Lipa Xavier*
Uma torneira de metal, daquelas mais simples, em cima a pobre pia branca, como a abençoá-la. Não cai água dessa torneira.
Há uma pequena pia de banheiro, daquelas das casas pobres que se conhece pelo Brasil afora. Uma imagem, portanto, comum a nós. Há, ao fundo, uma parede amarelada, com a tinta gasta pelo tempo e uns furos ao longo dela, riscos que o tempo fez. Imagem ainda muito comum a quem convive e conhece a pobreza que grassa por este nosso país.
Uma torneira de metal, daquelas mais simples, em cima a pobre pia branca, como a abençoá-la. Não cai água dessa torneira.
Ao lado da pia uma imagem que, de algum modo, nos faria ainda lembrar o Brasil: uma menina mira em desespero uma imagem que não se vê, mas que pode ser suposta. A imagem que a menina mira fica do lado de cá da lente que a fotografou, e por isso não pode ser vista por quem a olha, na foto.
A menina chora com uma dor tão forte que dizer pungente seria pouco. Seus dois olhinhos negros dizem muito mais do que pungência, cheios da água que à torneira falta, porque a cortaram.
Os cabelos, em desgrenho, denunciam um outro aspecto do desespero que à pequena menina assoma. E a boca, neste preciso caso mais fortemente do que os olhos, traduz o misto de dor, desespero e impotência de que se vê vítima naquele momento paralisante, paralisado também ele, o momento, pela câmera que leva ao mundo aquela imagem.
Tudo isso poderia compor a cena de uma casa qualquer em um qualquer lugar do mundo, porque a dor por aí anda sem escolher endereços. Uma coisa, porém, faz da cena acima – em que uma pobre criança denuncia com o rosto desesperado seja a perda dos pais ou o desabamento da sua casa, ou ainda a morte de um outro pequeno irmão – algo mais vivo, concreto e real.
E o que faz daquela cena algo diferente da miséria reinante, das dores já conhecidas de que somos vizinhos, é uma outra foto, que acima dela está: um jovem desesperado, mas com um desespero de adulto, segura sem acreditar o rosto de um homem em sangue, inerte, deitado sobre o asfalto coberto de estilhaços. E ao seu lado corpos, corpos, corpos mortos, perdoem-me a redundância.
A cena que aqui se descreve não é ainda uma imagem da história, mas será.
Ocorreu na Palestina ainda hoje, e nos chega pelos mais rápidos meios de comunicação, que – ainda que parcialmente – nos relatam em grãos e em gotas a tragédia que o estado judeu está a perpetrar na terra que a Bíblia diz que foi aquela em que Jesus andou.
Da torneira que está sobre a pia, ao lado da qual chora a sua dor aquela pequena criança palestina, não cai uma gota d'água sequer, porque cortaram o fornecimento. Mas não puderam cortar a água que os seus olhinhos negros e desesperados são capazes de verter.
Não há água, não há energia. Faltam alimentos de primeira necessidade. Não há remédios para atender aos feridos e doentes. Crianças morrem, idosos também. As ambulâncias não conseguem levar socorro aos que dele mais necessitam, porque o estado sionista não permite.
Nem mesmo os médicos que – em solidariedade humana somente comparável ao socorro vermelho dos tempos do século XX – tentam furar o bloqueio da fronteira para socorrer as vítimas, nem mesmo a eles dá passagem o ódio e o racismo que guia e orienta as ações daquele estado terrorista a que se dá o nome de Israel.
São já nove dias de uma guerra insana, unilateral, de um estado armado pelo que de mais moderno pode haver em técnicas de matar, contra um povo que se amontoa como bichos numa estreita faixa de terra a que se dá o nome de Gaza, e que há dezoito meses é vítima de um bloqueio daquele mesmo estado assassino. Este último, o estado de Israel, é armado pela maior máquina de guerra que a humanidade já viu, e treinado por essa mesma máquina de destruição, o exército dos Estados Unidos da América. Este, a representar o seu governo belicoso e igualmente terrorista, não se cora e nem se envergonha de matar civis inocentes em nome da sua necessidade de domínio.
O povo palestino resiste como pode, inclusive a lançar pequenas bombas – pequenas se comparadas àquelas que o exército de Israel derrama sobre suas casas – e enfrenta, além da morte semeada sem parcimônia pelos judeus, o silêncio cúmplice dos organismos internacionais e dos governos das grandes potências. Do seu lado já são mais de 500 mortos, muitos civis, muitas crianças, sabe-se lá se a própria menina da foto, que com o rosto transtornado nos denuncia o crime de que é vítima o seu povo e lança ao mundo um pedido de socorro. Do outro lado somam cinco os que caíram....
É uma triste inversão do mito bíblico de Davi e Golias, aqui convertido o gigante filisteu num povo acuado, e o pequeno menino que representou outrora o povo hebreu fazendo agora as vezes do agressor covarde e bárbaro.
Mas aquela pequena menina palestina, Fátima será seu nome, não se sentirá sozinha. Com ela está a consciência deste nosso mundo. Com ela estão milhões de homens e mulheres, que se indignam em um santo ódio à carnificina de que são vítimas ela e a sua família, entendida aqui como família todo o povo palestino em particular e o povo árabe em geral. E, em sentido mais geral ainda, a humanidade toda, igualmente ameaçada.
Chore a sua dor, pequena Fátima, chore. Os tempos de dor passarão. E o jovem que na foto acima da sua chora em dor e desespero a morte do homem cujo rosto retém entre as mãos, saberá preparar-te para a resistência.
*Lipa Xavier é sociólogo e presidente municipal do PCdoB de Montes Claros
A Estrada vai além do que se vê!
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